Teoria do crime – fato ilícito – exercício regular de direito

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CONCEITO

O exercício regular de direito é causa de exclusão da ilicitude que consiste no “exercício de uma prerrogativa conferida pelo ordenamento jurídico, caracterizada como fato típico” (CAPEZ, 2020, p. 544).

FUNDAMENTO

O exercício regular de direito, segundo Graf Zu Dohna, citado por Fernando Capez, fundamenta-se na premissa de que “’uma ação juridicamente permitida não pode ser, ao mesmo tempo, proibida pelo direito’”, ou, em outras palavras, “’o exercício de um direito nunca é antijurídico’” (DOHNA apud CAPEZ, 2020, p. 544) – grifou-se.

ALCANCE DO EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO

Qualquer pessoa pode exercer um direito subjetivo ou uma faculdade previstos em lei, seja essa lei penal ou extrapenal. É que, segundo a Constituição Federal, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF/88, art. 5º, II), disso resultando que “se exclui a ilicitude nas hipóteses em que o sujeito está autorizado a esse comportamento”, como, por exemplo, no caso de prisão em flagrante efetuada por particular (CAPEZ, 2020, p. 544).

PRISÃO EM FLAGRANTE: o Código de Processo Penal é claro ao estabelecer, em seu art. 301, que qualquer pessoa do povo poderá prender quem esteja em flagrante delito, enquanto as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem estiver nessa situação. Assim, a prisão em flagrante efetuada por pessoa do povo é exercício regular de direito (faculdade), enquanto a efetuada por autoridade policial e seus agentes é estrito cumprimento do dever legal (obrigação).

REQUISITOS

SIGNIFICADO DA EXPRESSÃO “DIREITO”

A expressão “direito”, no exercício regular de direito, deve ser entendida em sentido amplo, abrangendo todas as formas de direito subjetivo, seja ele decorrente da lei penal ou de outras leis.

PAI/MÃE QUE DESEJA CORRIGIR O FILHO: o pai/mãe que aplica castigos ao filho, inclusive castigos físicos leves, se o fizer com a intenção de corrigir (animus corrigendi), não pratica crime, pois está no exercício regular do direito do poder familiar, que está previsto no art. 1.634, I, do Código Civil.

CONHECIMENTO DA SITUAÇÃO JUSTIFICANTE

Para incidir o exercício regular de direito, é necessário que o agente atue conhecendo a situação que justifica sua conduta, pois, do contrário, não incidirá a excludente de ilicitude.

Assim, o pai/mãe que agride o filho não com intenção de corrigir, mas por puro sadismo, não está amparado pelo exercício regular de direito, cometendo crime.

APLICAÇÃO EM CASOS ESPECÍFICOS

INTERVENÇÕES MÉDICAS E CIRÚRGICAS

No caso de intervenções médicas e cirúrgicas, temos duas situações:

INTERVENÇÕES MÉDICAS/CIRÚRGICAS PRATICADAS COM O CONSENTIMENTO DO PACIENTE OU DE SEU REPRESENTANTE LEGAL: nesse caso, caracteriza-se a excludente de ilicitude do exercício regular de direito.

INTERVENÇÕES MÉDICAS/CIRÚRGICAS PRATICADAS SEM O CONSENTIMENTO DO PACIENTE OU DE SEU REPRESENTANTE LEGAL: nesse caso, não haverá exercício regular de direito, afinal, o titular do direito não o exerceu e não o conferiu ao médico, mas, por outro lado, o médico que o fizer está em estado de necessidade em favor de terceiro, pois, diante de dois bens jurídicos (liberdade do paciente versus saúde do paciente), optou por aquele que tinha maior peso (saúde do paciente), amparado no art. 146, § 3º, I, do Código Penal. Segundo alguns autores, esse dispositivo do Código Penal não afasta a ilicitude, mas sim a tipicidade, já que, diante da expressa exceção legal, o fato deixa de ser típico.

VIOLÊNCIA DESPORTIVA

A doutrina clássica entende que a violência praticada durante esportes é considerada como fato típico, mas não ilícito, por estar amparada pelo exercício regular de direito.

Porém, para outra parte da doutrina, o fato, na realidade, é até mesmo atípico, pois o esporte é conduta regulamentada/permitida/fomentada pelo Estado, assim, diante da tipicidade conglobante (que enuncia que a tipicidade abrange não só a tipicidade formal, mas também a tipicidade material e a antinormatividade), a conduta não seria antinormativa e isso, portanto, afastaria a tipicidade.

Enfim, de qualquer modo, para que as lesões desportivas sejam amparadas pela excludente de ilicitude do exercício regular de direito (ou até mesmo pela excludente de tipicidade consistente na não antinormatividade), são necessários os seguintes requisitos cumulativos:

i) a agressão ter sido cometida dentro dos limites do esporte ou de seus desdobramentos previsíveis;

ii) o participante consentiu validamente na sua prática;

iii) a atividade não for contrária à ordem pública, à moral, aos postulados éticos que derivam do senso comum das pessoas normais, nem aos bons costumes (p. ex. “Clube da Luta”).

Ausente qualquer um desses requisitos, o fato será típico, como, por exemplo, no caso de um jogador de futebol que, durante uma partida, desfere um pontapé no rosto de outro jogador, já caído, com a partida momentaneamente interrompida, o mesmo no caso da mordida desferida pelo jogador do Uruguai, Luis Suárez, no ombro de um adversário durante os jogos da copa de 2014, sem nenhuma relação com a partida de futebol (CAPEZ, 2020).

OFENDÍCULOS (OFFENDICULAS OU OFFENSACULAS)

Segundo Fernando Capez:

Etimologicamente, a palavra “ofendículo” significa obstáculo, obstrução, empecilho. São instalados para defender não apenas a propriedade, mas qualquer outro bem jurídico, como, por exemplo, a vida das pessoas que se encontram no local. Funcionam como uma advertência e servem para impedir ou dificultar o acesso de eventuais invasores, razão pela qual devem ser, necessariamente, visíveis. Desta forma, os ofendículos constituem aparatos facilmente perceptíveis, destinados à defesa da propriedade ou de qualquer outro bem jurídico. Exemplos: cacos de vidro ou pontas de lança em muros e portões, telas elétricas, cães bravios com placas de aviso no portão etc. (CAPEZ, 2020, p. 548).

Como visto, os ofendículos, para assim serem considerados, devem estar visíveis.

Para alguns autores, serão classificados como exercício regular de direito (afinal, a lei autoriza a defesa da posse, segundo o art. 1.210, § 1º, do Código Civil) ou, para outros autores, como legítima defesa preordenada, prevalecendo, contudo, o primeiro entendimento, já que a legítima defesa exige reação imediata a agressão injusta atual ou iminente, o que, portanto, descaracteriza os ofendículos como tal, eis que esses são colocados com lapso temporal prévio suficientemente extenso a descaracterizar a legítima defesa.

Enfim, de qualquer modo, o sujeito, ao instalar os equipamentos, nada mais faz do que exercitar um direito, daí porque, se os ofendículos forem visíveis, a ilicitude estará afastada, seja por exercício regular de direito (tese majoritária), seja por legítima defesa preordenada (tese minoritária).

DEFESA MECÂNICA PREDISPOSTA

Enquanto os ofendículos têm de ser necessariamente visíveis, a defesa mecânica predisposta, por definição, consiste em aparatos que, embora tenham a mesma finalidade daqueles, são ocultos, que, portanto, dificilmente escaparão do excesso, configurando, quase sempre, delitos dolosos ou culposos, como, p. ex., no caso do indivíduo que instala tela elétrica na piscina de forma discreta, eletrocutando as crianças que a invadem durante a semana, devendo responder por crime doloso, pois assumiu o risco de produzis o resultado (homicídio ou lesões corporais), ou no caso do pai que instala dispositivo ligando a maçaneta da porta ao gatilho de uma espingarda, objetivando proteger-se de ladrões, mas vem a matar a própria filha, caso em que deverá responder por crime culposo (homicídio).

CONSENTIMENTO DO OFENDIDO

O consentimento do ofendido pode exercer diferentes funções, de acordo com a natureza do crime e suas elementares, a saber:

IRRELEVANTE PENAL

Em casos graves, como no crime de homicídio, por ser a vida um bem jurídico indisponível, a existência ou não de consentimento do ofendido (“vítima que pediu pra ser assassinada”) em nada altera o crime. Haverá crime de homicídio ainda assim.

CAUSA DE EXCLUSÃO DA TIPICIDADE

Segundo Capez, “quando o consentimento ou o dissentimento forem exigências expressas do tipo para o aperfeiçoamento da infração penal, a sua presença ou falta terá repercussão direta no próprio tipo”, assumindo, nessa hipótese, “a função de causa de exclusão da tipicidade”, como no caso do crime de furto em que o dono da coisa autoriza, implicitamente, que o outro a leve, ou no caso do crime de violação de domicílio, em que o dono da casa consente o ingresso do terceiro na sua residência (CAPEZ, 2020, p. 550).

CAUSA DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE

Não sendo o caso de exclusão da tipicidade, o consentimento do ofendido ainda poderá afastar o crime, excluindo, nesse caso, a ilicitude, desde que preenchidos alguns requisitos legais, quais sejam:

i) o bem jurídico tem de ser disponível (no caso da integridade física, apenas a integridade física superficial é disponível);

ii) aquele que consente tenha a capacidade jurídica e mental para consentir;

iii) o bem jurídico lesado ou exposto a perigo de lesão situe-se na esfera de disponibilidade de quem consente;

iv) o ofendido tenha manifestado seu consentimento livremente, sem coação, fraude ou outro vício de vontade;

v) o ofendido, no momento do consentimento, esteja em condições de compreender o significado e as consequências de sua decisão, possuindo, pois, capacidade para tanto;

vi) o fato típico penal realizado identifique-se com o que foi previsto e constitua objeto de consentimento do ofendido (p. ex. consente lesões leves, mas o agressor resolve matar)

Ocorre a exclusão da ilicitude em razão do consentimento, por exemplo, no seguinte caso:

CRIME DE DANO: se alguém pede a um terceiro para destruir um bem daquele, o terceiro que o faz pratica fato típico, de dano, mas que não é ilícito, diante do consentimento do ofendido.

CAUSA DE EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE

Nos crimes de ação penal pública condicionada à representação e de ação penal privada, o consentimento do ofendido acarreta a extinção da punibilidade do agente, em razão da decadência, renúncia, perdão do ofendido, perempção etc., sendo irrelevante, nesses casos, se o bem jurídico é disponível ou não, já que a vítima tem a faculdade de autorizar ou dar início, respectivamente, à persecução criminal.

CONSENTIMENTO DA VÍTIMA NOS DELITOS CULPOSOS

É possível o consentimento do ofendido ainda que nos delitos culposos, desde que seja cientificado da exata dimensão do perigo a que se expõe e, livremente, resolva assumi-lo.

ORDEM PÚBLICA E BONS COSTUMES

O consentimento do ofendido contrário à ordem pública e aos bons costumes é ineficaz, ainda que se trate de bens disponíveis. Contudo, “o conceito de bons costumes é bastante variável, de acordo com o momento histórico, as tradições e a cultura de uma coletividade” (CAPEZ, 2020, p. 553).

SEXO NA CONSTÂNCIA DO CASAMENTO É EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO?

Por mais que alguns doutrinadores civilistas entendam que há o dever de cópula no casamento, podendo a sua ausência inclusive dar causa à anulação do ato, certo é que, inobstante isso, a consequência para a falta com esse dever de cópula, no máximo, ocorre na esfera jurídica, de maneira que não pode, por exemplo, o marido constranger sua mulher a praticar o sexo com ele mediante violência ou grave ameaça, pois a violência ou grave ameaça, no caso, não são meios aptos para o exercício regular do “direito/dever de cópula”.

REFERÊNCIAS

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 1, parte geral: 24ª ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020 – versão digital.


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Lucas Cotta de Ramos

👨🏻‍💼 Advogado, professor e autor de artigos jurídicos.